Tem sido bastante interessante acompanhar a discussão
sobre as biografias não autorizadas. O debate extrapolou há muito os aspectos
meramente jurídicos e já se transformou numa verdadeira batalha entre liberdade
de expressão e proteção da privacidade.
Do ponto de vista jurídico a questão envolve a
discussão da constitucionalidade dos Artigos 20 e 21 do Código Civil que vislumbram
a possibilidade de proibição de divulgação de escritos, a transmissão da
palavra e a utilização da imagem de uma pessoa , bem como asseguram a proteção
de sua privacidade.
De um lado há os que apoiam iniciativas como a da Associação
Nacional dos Editores de Livros (Anel) que ajuizou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 4815) perante o Supremo Tribunal Federal questionando
a constitucionalidade da necessidade de autorização prevista no artigos 20 do
Código Civil e propondo que as disposições desse artigo sejam interpretadas de
forma a afastar a necessidade de consentimento do biografado, por violar o
principio constitucional da liberdade de expressão independente de censura ou
licença.
De outro lado há os que entendem que a publicação de
biografias deve sujeitar-se à autorização prévia do biografado, sob pena de infração
de outro princípio constitucional que assegura a inviolabilidade da intimidade,
da vida privada, da imagem e da honra das pessoas.
Paralelamente às posições acirradas de cada um dos
lados há projetos de lei alterando o Artigo 20 do Código Civil, para dispensar
de autorização a publicação de biografias de pessoas públicas, bem como para
estabelecer um rito processual mais célere para processos relativos à violação
da intimidade e da vida privada.
Juridicamente, trata-se de procurar harmonizar a
coexistência de princípios e direitos constitucionais e que, não raro, podem parecer
conflitantes. Nessa árdua tarefa, devemos, como dizia um antigo e sábio
professor, atentar não apenas para o texto das normas legais, mas
principalmente para as consequências da interpretação que venha a se dar a
referidos textos.
Primeiramente, deve-se esclarecer que os Artigos 20 e
21 do Código Civil não se referem expressamente a biografias não autorizadas.
De fato, referidos artigos estabelecem que:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da
justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a
transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem
de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo Único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes
legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os
descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a
requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir
ou fazer cessar ato contrário a esta norma."
Note-se que poderão ser proibidas a divulgação,
transmissão, publicação ou utilização tão somente dos escritos, da palavra ou da
imagem da própria pessoa interessada e não qualquer informação a respeito de tal
pessoa. Não se trata de proibir qualquer obra que contenha relatos, informações
ou referências à vida ou à trajetória de determinada pessoa e que sejam de
autoria de terceiros, mesmo que com fins comerciais. Ainda assim, não se poderá
proibir a divulgação ou utilização de materiais (escritos, gravações e imagens)
de quem quer que seja, caso tais materiais sejam necessários para fins
judiciais ou para a manutenção da ordem pública.
Nesse sentido é preciso lembrar que a liberdade de
expressão é fundamental para a ordem pública, para o Estado democrático de
direito. E que, em sentido mais amplo, liberdade de expressão engloba não
apenas o direito de manifestar-se livremente, mas também o direito de informar
e de ter acesso à informação.
É importante
que não se interprete esses dispositivos do Código Civil de forma a assegurar
possibilidade de proibição mais abrangente. Tal interpretação poderá prejudicar
não só a atividade de biógrafos, mas poderá trazer consequências nefastas para
atuação de autoridades administrativas, policiais, judiciais, bem como para o
pleno exercício da atividade jornalística, cinematográfica, literária e
acadêmica.
Por outro lado, existir como indivíduo e poder
resguardar a própria intimidade, a privacidade e os dados pessoais é essencial
para a vida em sociedade e, portanto, igualmente essencial para um Estado democrático
de direito. Não se pode admitir, portanto, que, em nome do direito
constitucional de liberdade de expressão possa-se invadir a intimidade ou a
vida privada do indivíduo. Há que se ter um limite para o exercício da
liberdade de expressão e esse limite é exatamente a garantia constitucional da inviolabilidade
da intimidade e da vida privada!
É verdade que essa garantia, embora elementar,
embora fundamental, não é absoluta nem inflexível. Pelo contrário, deve ser admitida com flexibilidade
capaz de permitir que seja menos rigorosa em alguns casos (como no caso de
pessoas públicas) e mais rigorosa em outros (como no caso de crianças e menores
de idade).
Mas num mundo em que novas tecnologias permitirão,
cada vez mais, a captura, a coleta e a divulgação de instantes de intimidade e
momentos de suposta privacidade do indivíduo;
em que provedores de acesso e prestadores de serviço serão depositários
de todo o histórico de nossa existência digital (incluindo aí todos os dados de
acesso, de navegação, toda criação intelectual, a correspondência, os arquivos,
dados e informações pessoais); em que boa parte (senão todos) os nossos
documentos, discos, livros, fotos estarão armazenados na nuvem de algum
provedor que sequer saberemos ao certo onde está, me parece importante que
governos, empresas e sociedade tenham clara percepção e respeito pelos limites
da intimidade e da vida privada do indivíduo.
by Fernando Stacchini