quarta-feira, 6 de junho de 2007

Privacidade das pessoas notórias na Internet (Comentários sobre o caso Cicarelli x You Tube)


Na sociedade democrática, o direito à privacidade e a liberdade de expressão são constitucionalmente tutelados. E como proceder quando a liberdade de expressão colide com o direito à privacidade? O caso Cicarelli versus YouTube, como ficou conhecido o processo movido pela famosa modelo e seu namorado contra o site de vídeos mais acessado da internet, por conta da divulgação de cenas íntimas do casal na praia, retrata bem a controvérsia da questão e merece, pelo ineditismo, algumas considerações.

Todas as pessoas têm a garantia constitucional da inviolabilidade de sua honra, imagem, intimidade e vida privada. Embora seja o direito à privacidade inerente a todas as pessoas, no caso daquelas que tenham notoriedade pode ocorrer a revelação de fatos de interesse público, sem a necessidade de seu consentimento. Há, assim, uma redução dos limites da privacidade, isto é, a privacidade da vida da pessoa notória é, naturalmente, diminuída pelo interesse público que a própria pessoa desperta.

As personalidades notórias pertencem ao público. A exposição à publicidade acaba transformando-as em objeto de legítimo interesse público — elas perdem parte de sua intimidade, embora conservem o direito em caráter mais restrito.

Nesse sentido, a esfera da vida particular depende do modo de ser do indivíduo, varia conforme o status da pessoa e a forma pela qual ela se insere no agrupamento social. A pessoa notória, diante disso, tem o âmbito da vida privada reduzido de forma sensível, pois pertence literalmente ao público, havendo um interesse da coletividade em conhecer a sua vida íntima, as reações que experimenta e as peculiaridades que oferece, principalmente se o episódio íntimo tiver desempenhado papel relevante na formação da personalidade notória.

De igual maneira, há diferenças na esfera da vida privada de cada indivíduo, de acordo com seu modus vivendi. Há carreiras e profissões exercidas sob as luzes de palcos, diante das câmaras de televisão, em comícios ou contatos permanentes com a imprensa, em tribunas de parlamentos e sítios de freqüência coletiva. A publicidade, nesses casos, é inerente e desperta o interesse e a curiosidade do público, limitando o âmbito da vida privada. O público interessa-se por detalhes da vida dos homens célebres e aqueles que buscam a publicidade não podem queixar-se da divulgação de dados que lhes dizem respeito, embora preferissem guardá-los para si.

Há unanimidade entre a doutrina no sentido de que o direito à privacidade deve ser relativizado no tocante às pessoas notórias:

Para Adriano De Cupis: "as pessoas de certa notoriedade, assim como não podem opor-se à difusão da própria imagem, igualmente não podem opor-se à divulgação dos acontecimentos da sua vida. O interesse público sobreleva, nesses casos, o interesse privado; o povo, assim como tem interesse em conhecer a imagem dos homens célebres, também aspira conhecer o curso e os passos da sua vida, as suas ações e as suas conquistas; e, de fato, só através de tal conhecimento pode formar-se um juízo sobre o seu valor. Mesmo nestes casos, por outro lado, as exigências do público detêm-se perante a esfera íntima da vida privada, e, além disso, as mesmas exigências são satisfeitas pelo modo menos prejudicial para o interesse individual."

No mesmo sentido é o entendimento de Capelo de Souza ao defender que: "é menor a intensidade da tutela nos casos em que a vida privada dos indivíduos é adjacente à esfera pública dos mesmos, nomeadamente, quando o indivíduo se movimenta em lugares públicos, como estradas, restaurantes, praias, cerimônias públicas, recintos culturais (teatro, cinema, ópera, etc.) ou desportivos, mas em que a privacidade da sua vida impõe mesmo aí uma certa reserva."

Pedro Frederico Caldas afirma, em igual sentido, que: "as vidas e as imagens dessas pessoas são esquadrinhadas às largas pelos meios de comunicação, em busca de fatos ou imagens reveladoras de suas preferências, às vezes pelas coisas mais banais, suas idiossincrasias, seus estilos de vida, relacionamentos íntimos, etc. Enfim, suas vidas e modo de ser são escrutinados a todo tempo sem que essas figuras notórias nada, ou quase nada, possam fazer. Este é o ônus de quem goza de uma vida predicada por uma das hipóteses acima ou assemelhadas, exibindo-se como o campo de privacidade mais restrito de todos, o dos chamados homens públicos, cujas vidas podem ser uma referência, para toda a sociedade. Quando alguém busca uma função inerente ao que se pode chamar de homem público está automaticamente abdicando do direito de manter certas reservas que a qualquer dos simples mortais é conferido".

Verifica-se, assim, que pode ocorrer a divulgação de fatos de interesse público, independentemente da anuência da pessoa notória. Contudo, deve-se preservar os aspectos mais íntimos, a vida familiar, domiciliar e as correspondências.

As pessoas notórias têm sua intimidade limitada apenas em decorrência do interesse público. Nas demais ocasiões, igualam-se aos homens comuns no direito à intimidade.A dificuldade está, entretanto, em estabelecer a fronteira entre a vida privada e pública.

Quando se trata da divisão entre vida pública e privada, as esferas não podem ser rígidas, dependendo sua amplitude da categoria social e do grau de notoriedade da pessoa.

Conforme se depreende do acima exposto, é unânime entre os doutrinadores o entendimento de que a pessoa notória tem relativizado e reduzido o limite de sua vida privada, principalmente diante da necessidade de respeito ao direito à liberdade de expressão, que engloba, entre outros, o direito à informação.

Em seu sentido mais amplo a liberdade de expressão abrange não apenas o direito de manifestar-se livremente, mas compreende também o direito de se informar e de ser informado.

Tarefa árdua, contudo, é a conciliação da liberdade de expressão com os direitos da personalidade, principalmente aqueles relativos à vida privada e intimidade.

A liberdade de expressão deve ser respeitada, uma vez que fundamental para a manutenção do estado de direito e da democracia, mas não se pode admitir que prevaleça em detrimento de direitos individuais tão elementares como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

Isso não equivale dizer que a intimidade e a vida privada devam ser consideradas como conceitos absolutos e inflexíveis. Pelo contrário, há situações, circunstâncias e interesses que exigem a retração dos limites da intimidade e da vida privada (como no caso de pessoas notórias em locais públicos) ou impõem a expansão de tais direitos (como no caso de menor de idade).

A liberdade de expressão deve se ajustar a esses limites flexíveis do direito à intimidade e à vida privada, ocupando os espaços de retração ou expansão, sem, contudo, sobrepor-se aos mesmos.

O caso Cicarelli versus You Tube gerou muita controvérsia sobre a pertinência ou não das decisões que resultaram no bloqueio do acesso ao site do You Tube na internet, principalmente porque tais decisões envolvem o direito à privacidade de pessoas notórias em local público e o direito à liberdade de expressão diante do interesse público. Nesse sentido, entende-se que as decisões podem ser questionadas em três aspectos:

a)         em primeiro lugar, porque decidiram pela proteção da intimidade e da vida privada de pessoas notórias que claramente não se preocupam em mantê-las fora do alcance do público. Pelo contrário, vivem de modo a se aproveitar da mídia para divulgar seus relacionamentos e obter ainda mais notoriedade. Nesse tocante, há que frisar entendimento de que as pessoas notórias não podem queixar-se posteriormente de violação ao direito à vida privada se, por suas próprias atitudes, encorajaram indiscrições;

b)          em segundo lugar, porque, da forma como proferidas, conduziram ao equívoco do impedimento do acesso de usuários brasileiros ao site do You Tube, levando algumas operadoras a, de fato, bloquearem o acesso ao site. Nesse sentido, as decisões levaram a uma situação na qual o interesse particular de pessoas notórias sobrepôs-se de forma desproporcional ao interesse público, não só diante do fato específico, mas também pelo direito de acesso à internet, pois ao invés de impedirem a divulgação das imagens supostamente prejudiciais, tornaram inacessível todo o site;

c)         por fim, as decisões foram inócuas no que diz respeito a impedir a disseminação das imagens na internet. Isso porque no momento em que foram proferidas, as imagens da modelo e de seu namorado já haviam se propagado na internet, de forma que de pouca ou nenhuma valia para o casal seria o bloqueio do site do You Tube. Ao contrário, as decisões só serviram para atrair ainda mais publicidade para as imagens que, a partir daí, foram divulgadas em outros sites e veículos de comunicação.

O caso Cicarelli versus YouTube é emblemático porque demonstrou claramente a preocupação da sociedade com relação à forma como vem sendo utilizada a internet e o impacto de sua utilização, seja no tocante ao respeito dos direitos à vida privada e intimidade, seja com relação à liberdade de expressão.Ademais, deixou patente a incapacidade das operadoras de comunicação e demais empresas estabelecidas na internet de: (a) impedir (pelo menos com a rapidez necessária) a divulgação de quaisquer imagens, dados e informações na rede e (b) identificar os autores da divulgação e os dados para que respondam por eventuais delitos.

No caso concreto, nada indica que, como debatido, tenha havido violação ao direito à privacidade e intimidade, diante da retração deste por se tratar de pessoas notórias em local público, despertando forte interesse público. De qualquer forma, ainda que assim não fosse, o caso Cicarelli versus You Tube serve coma um válido alerta às operadoras de comunicação e demais empresas estabelecidas na internet: ou investem em tecnologias que possibilitem o imediato bloqueio de atos que possam violar direitos de terceiros em seus sites e a pronta identificação dos responsáveis ou correm o risco de terem que arcar com o bloqueio de toda sua atividade na rede.


(Com a participação de Camila Pereira Rodrigues Moreira Marques, originalmente publicado na Revista de Direito de Informática e Telecomunicações)

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